O movimento advindo da década de 1970, nos subúrbios de Nova Iorque, em um contexto de gangues e alta taxa de violência urbana, tinha como principal objetivo, canalizar a violência em que estava submersa, através de uma nova forma de arte, com a introdução de um modo particular de cantar, que consistia em levadas bem fraseadas e rimas bem feitas, muitas vezes bem politizadas e outras banais e sexuais, cantadas em cima de um beat instrumental, que daria origem ao rap. Tais manifestações, rapidamente se espalharam pelo globo, deixando como herança a possiblidade, caminhos e meios para se resistir as mazelas do cotidiano através de arte e muito Hip Hop.
Em Nova Andradina, o movimento se popularizou nos anos 2000, com o surgimento dos grupos de dança, que atuaram e atuam nessa cena cultural por mais de duas décadas. Memoráveis grupos como “Pânico”, “Mister Night Dance”, “Dragons Dance” e o “Requebra” eram atrações garantidas nos mais diversos eventos culturais de Nova Andradina e ocupavam as praças da cidade, com apresentações de dança, na cultura de paquera que se existia na época.
Gradativamente, outros elementos do Hip Hop foram introduzidos nesse cenário cultural, como o DJ e a Rima. Bruno Seleguim, atuante na cena do Hip Hop há mais de dez anos e um dos responsáveis pela introdução das Batalhas de Rima na cidade (com o Domingo de Rima), conta que as batalhas são um meio para que os MCs possam expressar seus pensamentos e sentimentos da forma mais sincera possível. “O Domingo de Rima começou com uma brincadeira de amigos. Todos os domingos íamos na Praça das Águas, com um violão e um cubo de guitarra para rimar ao som de um beat. Hoje a gente percebe que isso abriu portas para o crescimento de uma cultura e que através dela, muita gente tá conseguindo expressar seus pensamentos para o mundo”, explica ele.
Mais do que uma competição, as batalhas têm valores que vão muito além da casualidade de ganhar ou perder, e parece ser um grande passo para pensarmos na potência social que tal cultura tem na vida de quem a prática. Através da rima, o MC reafirma sua identidade, ao se expressar de um modo genuíno, compartilhando vivências singulares, resultando em trocas culturais autenticas, evocando um sentimento de pertencimento. “As batalhas têm esse objetivo. Levar valores e ensinamentos e ser uma competição em que ganhar ou perder fica em segundo plano”, diz Kaique Moura (Challa), que já coordenou e dirigiu edições de diversas batalhas na cidade.
Outra característica marcante dessas batalhas, é a ocupação das praças da cidade. Diversas batalhas foram criadas através do Domingo de Rima. A popular Batalha das Águas acontecia aos sábados do mês, na Praça Geraldo Matos Lima e foi considerada a principal batalha da cidade durante entre 2018 e 2019, mas, depois, foi enfraquecida por conta da pandemia, decorrente da COVID-19. Outras batalhas surgiram por conseguinte, como a Batalha da MDS (que acontece na Praça da Morada do Sol), a Batalha do Pirata (que acontece na Praça da Fogueira) e a mais recente “Valhalla Battle”, (que acontece na Praça Brasil).
É preciso destacar ainda, a importante contribuição do grupo Cia Storm (fundado por Fernando Gomes, a partir da dissolução do grupo Requebra) para a cena do Hip Hop da cidade. O grupo desenvolve eventos e projetos que visam dar visibilidade e valorização para o Hip Hop. A destacar, o espetáculo “Os Mourandrades” realizado em 2021, que narra a história de Nova Andradina. O anual evento “Vale das Ruas”, que prioriza as disputas com batalhas de dança e rima e o intercâmbio cultural, com a participação de grupos de outras cidades do estado. E o “Arte na Quebrada”, que além de imprimir valores artísticos, cumpre uma importante função social. O projeto tem como objetivo levar os quatro elementos do Hip Hop, de forma mensal, para os bairros periféricos da cidade, apresentando a arte de modo palpável, não elitizada.
“O objetivo desses projetos é levar a cultura hip hop a todos os cantos da cidade, para todas as classes sociais. Tirar o pessoal de Nova Andradina da rotina. Mostrar o nosso universo para a população, através da dança, do grafite e outras manifestações culturais urbana”, explica o B-boy, MC, grafiteiro, membro da CIA Storm e do Se Vira No Beat, Rafinha Vasconcelos.
Apesar da potência do movimento aqui evidenciado, tal cultura ainda sofre com a marginalização e os preconceitos velados (e alguns não tão velados assim) de uma sociedade desinformada. A se ter como exemplo, em live organizada pela prefeitura de Nova Andradina, em 2021, através da concepção de Bruno Seleguim ao projeto “Conexão Urbana” – que realizou uma Batalha de Rima de modo virtual – alguns moradores da cidade destilaram comentários ofensivos e maldosos aos MCs que participavam da batalha. “As pessoas taxam o Hip Hop como coisa de marginal porque não conhecem verdadeiramente a cultura. Quando o Hip Hop começou, na década de 1970, surgiu com o objetivo de afastar os jovens das gangues. Antes, quando eu escutava esses tipos de comentários maldosos sobre a cultura, eu ficava quieto, mas depois de pesquisar e conhecer a essência do meio que eu faço parte, eu procuro sempre informar a pessoa”, revela Junior Lima, atuante na cultura urbana da cidade.
Outro fator que imprime certa dificuldade ao crescimento do movimento, é a falta de políticas públicas culturais e incentivo financeiro ao fomento artístico por parte da gestão cultural da cidade. Assim os e as MCs, B-boys, B-girls, dançarinos, dançarinas, produtor e produtoras protagonistas dessa forte expressão cultural são obrigados a além de resistir socialmente, a resistir culturalmente, ao apagamento e silenciamento do movimento na cidade. “Falta muito incentivo cultural aqui. Seja financeiro ou de abertura de espaços. Nosso movimento é totalmente independente, e mesmo com tantas dificuldades, seguimos na luta para não deixar o movimento acabar”, conta Kaique Moura.
Essas adversidades – embora prejudiciais – evidenciam ainda mais a característica de resistência que o movimento tem e que precisa ser entendido como ele é de fato. Tentar imprimir quaisquer outros significados contrários aos benefícios vinculados a um movimento singular, é ignorar seus valores sociais no processo de cidadania do indivíduo. Preconceitos e outras formas de invalidação por parte de uma sociedade centralizada e desprovida de informações, faz acreditar que – nesse cenário – em que o florescimento social se dá pelas marginais, a margem é, na verdade, o centro. (Matéria produzida com base nas entrevistas realizadas para a produção do documentário “Cada Canto da Cidade”, através das falas dos próprios artistas que pertencem ao movimento da cultura urbana na cidade).
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