Publicado em 10/10/2021 às 14:47, Atualizado em 10/10/2021 às 17:57

"Que memória queremos preservar?" por Ricardo Oliveira da Silva

Ricardo Oliveira da Silva,
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Foto: Aline Teodoro

No último dia 07/10 entrou em vigor na capital paulista lei que altera o nome da Avenida Auro Soares de Moura Andrade para Avenida Mário de Andrade, na Barra Funda, zona oeste da cidade de São Paulo. De acordo com a notícia veiculada pelo site de notícias Terra, entre as justificativas para a alteração do nome da avenida consta que ela fazia injusta homenagem a uma autoridade que, a despeito de seu compromisso com a Nação, desrespeitou os preceitos democráticos que a Constituição de 1946 regia para o país.

O nome Auro Soares de Moura Andrade também está ligado à história de Nova Andradina, uma vez que seu pai, Antônio Joaquim de Moura Andrade, foi o fundador da cidade no final da década de 1950. E por aqui, ele igualmente é nome de logradouro, apesar de nefasta participação nos acontecimentos que resultaram na implantação da Ditadura Militar.

Auro Soares de Moura Andrade presidiu sessão do Congresso Nacional no início de abril de 1964, enquanto tropas do Exército se mobilizavam contra o governo federal, sendo responsável por declarar vacante a Presidência da República, mesmo com o então Presidente João Goulart estando em exercício de suas atividades no país. Esse ato buscou dar um verniz de legitimidade a derrubada de um governante que tinha sido democraticamente eleito e resultou na implantação de uma ditadura que perdurou até 1985.

A mudança do nome da avenida na capital paulistaé ilustrativa do fato de que a identificação de lugares como ruas, avenidas e praças é muito mais do que um ato usual do poder público. Os nomes são homenagens e estão ligados a preservação de uma determinada memória por grupos da sociedade que possuem força política para realizar esse registro.

Aqui eu gostaria de mencionar um segundo caso para reforçar minha leitura. Em agosto de 2015 a principal via de acesso à cidade de Porto Alegre, denominada Avenida Presidente Castello Branco, passou a se chamar Avenida da Legalidade e da Democracia. O nome da avenida foi modificado em sessão da Câmara Municipal da capital porto-alegrense.

Até então a avenida homenageava o primeiro presidente da Ditadura Militar, Humberto de Alencar Castello Branco, que governou o país de 1964 a 1967. Através de Atos Institucionais o seu governo cassou direitos políticos de diversas pessoas, extinguiu o pluripartidarismo, estabeleceu eleições indiretas e o fechamento do Congresso Nacional.

Já o nome Avenida da Legalidade e da Democracia era uma homenagem a Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Brizola em 1961, na época governador do Rio Grande do Sul, para garantir a posse do Vice João Goulart como Presidente da República, após renúncia do titular do cargo, Jânio Quadros, conforme estabelecido pelas regras constitucionais do país. Naquele momento, as Forças Armadas pressionavam para que o Vice-Presidente, visto como adversário político, não assumisse o posto do Executivo.

Contudo, a alteração do nome da avenida da capital gaúcha acabou sendo alvo de ação judicial por setores inconformados com a decisão da Câmara Municipal de Porto Alegre. Em abril de 2018, após o julgamento de recursos, o Tribunal de Justiça decidiu que a Avenida da Legalidade e da Democracia voltaria a ser chamada Avenida Castello Branco.

Os casos mencionados me remetem a seguinte questão: que memória queremos preservar? Homenagear indivíduos que atentaram contra as instituições democráticas, deram respaldo para violação de direitos humanos e diversas outras formas de arbitrariedades é aquilo com o qual queremos nos identificar? É a história que molda o que somos?

Uma vez que a sociedade é composta por grupos com interesses e visões de mundo distintas, tais perguntas elucidam os conflitos que a permeiam e que se refletem, por exemplo, nos nomes que são dados aos espaços públicos. Em julho de 2021, durante manifestação contra o governo Bolsonaro, foi posto fogo na estátua Borba Gato, também localizada na capital paulista. A estátua é homenagem ao bandeirante que no período colonial foi um flagelo para populações indígenas. Os críticos acusaram o ato de vandalismo.

Mas as críticas almejavam apenas denunciar o que era visto como vandalismo ou tinham como pano de fundo o incômodo com uma ação que colocava o dedo na ferida sobre que tipo de memória era perpetuada por aquela estátua? Um assassino de indígenas é digno de ser homenageado com uma estátua? E, para retornar à realidade local, que memórias são preservadas a partir dos nomes dados aos espaços públicos de Nova Andradina? Deixo tais indagações como um exercício de reflexão para os leitores e leitoras.

Ricardo Oliveira da Silva

(Docente do Curso de História da UFMS/CPNA)