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“Tudo é importante, inclusive saber viver em sociedade”, por Ganem Amiden Neto

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Foto: Divulgação

Milton Santos, desconhecido por muitos, talvez seja um dos maiores brasileiros do século XX. Negro, nascido na distante Brotas de Macaúbas, berço dos primeiros diamantes encontrados na região central do estado da Bahia. Ainda jovem deixou o sertão com sua família migrando por algumas cidades até se estabelecer em Salvador. Aprendeu francês com seus pais, professores primários, em plena puberdade. Posteriormente se formou em Direito na Universidade Federal da Bahia.

Depois de formado, Milton Santos iniciou sua fase bibliográfica, com profunda imersão no regionalismo e de que modo essa matéria poderia interferir nos aspectos socioeconômicos em seu estado natal. Tal influencia advém de seu período de professor catedrático no Colégio Municipal de Ilhéus, além de marcantes influências de pensadores franceses pós segunda guerra mundial, como Pierre Birot, André Cailleux e Jean Tricart.

Dez anos após se graduar em Direito, Milton conclui seu Doutorado em Geografia na Universidade de Strasbourg – França. Com dezoito títulos de Doutor “Honoris Causa”, sua bibliografia é marcada por cinquenta livros publicados, cinquenta e oito livros coletivos, e duzentos e oitenta e seis artigos. Entre a diversidade de assuntos promovidos na seara geográfica, a questão social, muita das vezes abordada na Geografia Humana, era um dos campos explorados de modo esmiuçado, com profundo conhecimento adquirido seja no Brasil, como professor das Universidades de São Paulo (USP), Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e no exterior, lecionando nas Universidades de Toulouse, Bordeaux e Paris (Sorbonne), Universidade de Dar es Salaam (Tanzânia), Universidade de Columbia (EUA), Universidade de Toronto (Canadá) entre outras.

Uma das características da ciência geográfica é a sua capacidade de inserir na mesma cesta instrumentos sociais, territoriais, humanos, tecnológicos, culturais e históricos. Atualmente, a questão racial, por mais uma vez, recebe holofotes em magnitude global. Milton, dentro da sua inconfundível intelectualidade, por muitas das vezes abordou essa questão.

O vencedor do prêmio Vautrin Lud de 1994, honraria de maior prestigio da ciência geográfica mundial também denominado “Nobel da Geografia”, mencionou que teve a sorte de ser negro em quatro continentes, e em cada um desses lugares é diferente ser negro. A maneira como cada sociedade se organiza é que oferta as condições objetivas para que a situação encontrada possa ser tratada analiticamente, permitindo um posterior tratamento político. E essa mesma política para ser efetiva depende de uma atividade acadêmica eficaz, e a questão negra não escapa dessa condição.

Milton afirmava que não é o mundo que dita as regras das políticas que se faz em cada país. Não é o olhar para a África que irá ajudar na produção de uma política brasileira para o negro, tampouco o olhar para os Estados Unidos. O que irá impactar de fato é o estudo do negro dentro da sociedade brasileira, onde o território tem o importante papel na compreensão do que é uma nação, e o brasileiro tem enorme dificuldade para exprimir o que realmente pensa acerca dessa questão.

Ser intelectual é acostumar-se a ficar só, é não se incomodar com pensamentos contrários. Talvez por isso Milton sempre abordava com tamanha propriedade e de modo altamente crítico temas considerados delicados. Milton não deixava cicatrizar a ferida, justamente por expor a sua verdadeira causa. Em algumas ocasiões ele comentou de que adianta dizer que o negro é o menos favorecido no mercado de trabalho? Todo mundo já sabe disso, com pequenas variações é a mesma coisa sempre. De que adianta dizer que há um preconceito aberto? Todo mundo sabe disso, inclusive aqueles que comentem sabem. Nesse cenário, segundo Milton, que entra outro discurso, o da conscientização.

Essa conscientização permite uma luta continuada com a produção da consciência, que não pode ser obtida em um 13 de maio, ou em uma semana da consciência negra. Não é questão de consciência negra, é questão de consciência social. A luta do negro no Brasil só terá eficácia com o envolvimento de todos os brasileiros. Mas nós brasileiros entendemos o que é o Brasil?

Ganem Amiden Neto

Brasiliense e filho de Sul Mato-Grossense.

Desde 2019 é Assessor de Projetos Especiais da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul. Ex Chefe da Assessoria de Assuntos Estratégicos da Casa Civil do Governo do Distrito Federal. Por quase dez anos foi pesquisador do Departamento de Pesquisas Judiciárias do Conselho Nacional de Justiça

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